domingo, 23 de agosto de 2009

Dissolução




“Ando pensando. O que busco? O que quero? Há lugar depois da curva? Posso me curvar?”

Sentado no banco forrado, olhos petrificados, algo estava errado naquela noite de sexta-feira. Uma madrugada fria, de gente diferente e bizarra por todos os lados. Uns de caso com o acaso, outros tendo muito a explicar. Ah, pensou ele. A vida é cheia de parasitas, alguns mortos vivos. Sou o melhor em tudo, porque me vincular a esta gente? Posso e não posso, é isso que me agonia. Porque meu sangue frio desafia a vida, que insiste em querer se mostrar. E é quando o sol nasce, quando a almofadinha da rotina me chama para descansar, que penso em sumir do mapa, voar. Tenho dedos longos e pensamentos rápidos, sou como um pianista, batendo nas teclas da vida. Sou imortal. Agora aqui, olhos para frente, AVANTE!, me sinto como mais um dos mortos vivos que insistem em respirar. Sou genial.

Mal pensou aquilo e o vento fez a curva. Como num instante que demora 0,5 milésimos de segundo, mesmo tendo o raciocínio tão rápido, ele não acompanhou aquele momento. Se antes seus reflexos estavam comprometidos, desta vez ele viu tudo. Como em um cenário com câmeras desconexas, tudo foi se projetando, uma imagem até então nem pensada nem pelos maiores gênios em 3D. Foi girando, girando, e lembrou-se dos brinquedos que o davam ânsia de vômitos nos parques infantis. A diferença é para as atrações ele havia pagado ingresso e, ainda que relutante na fila, desafiou seus medos para deixar o estômago revirar. Mas para este momento inesperado ele havia comprado o desafio, apenas. O preço era caro demais.

O carro girou, girou e parecia não parar jamais. Que triste fim, ele pensou. Uma vida inteira para trás e para frente. Momentos únicos, vazios e felizes que passou, sem ao menos ter pensado sobre eles. Nas caixas de medicamentos, o êxtase que nunca chegou. A busca envaidecida pelo diferente, a morte que sempre fugia agora estava ali, com um copo de whisky não mão, sorrindo embevecida. Tão podre como o cheiro da pior vala, exalava um perfume que pelo mesmo milésimo de segundo parecia sedutor. Ela estava ali para buscá-lo. Ele teve certeza.

Piscou. Sentiu seu coração gelar. Piscou de novo. Fechou e abriu os olhos. E a morte já não estava mais ali. Havia desaparecido, mas o carro continuava girando. E terminou de girar com um baque surdo, baque que fez os cães da rua acordarem, latindo freneticamente. Ao redor dele, porém, o silêncio era absoluto. Como se não houvesse mais nada ali, além do convidativo olhar da morte. De repente, absorto em suas idéias, ele achou interessante que aquilo houvesse acontecido. Mas lhe causou estranheza que naquele copo, que a morte carregava, não havia whisky – era o que ele havia pensado – e sim um copo de água, refletindo sua agonia ininterrupta. Ele olhou para os lados, as alarmes dos carros o despertaram. E ele ficou ali, olhando nas esquinas, procurando a morte que se avizinhava, mas ela já não estava mais ali. Inspirou. Expirou.

Não muito longe dali, na calçada, a morte caminhava maltrapilha e desorientada, puxada por um cabo invisível de um carro branco que a rebocava. A morte era mesmo teimosa. Era orientada a dar avisos. Mas às vezes insistia em passar dos limites. Como o menino que não encontrou a curva certa. Ainda.

domingo, 9 de agosto de 2009

És capaz de ouvir a canção do vento?


Perdida, entre o milharal, a pequena menina parecia mais uma vítima de si mesmo. Guardando segredos e desejos, parecia flutuar na plantação, procurando significados para tudo. Para tudo, sim, uma contrariedade, porque o óbvio era pequeno demais. Ela queria ver as cores e ouvir a voz do vento. Desafiando, portanto, a vida, saiu em disparada, quando sentiu os primeiros sinais. Ele balançava o milharal, o fenômeno da natureza que mais a agradava. Não havia meias medidas, meias palavras, não havia nada que ela definisse naquele momento. Correu, esbaforida, procurando alcançar a força do vento. Se alcançasse a velocidade, portanto, conseguiria senti-lo mais verdadeiramente, talvez apanhá-lo entre os dedos. Seria muita audácia, mas quem duvidaria da menina, que de longe parecia apenas brincar? E enquanto os produtores enchiam suas carroças com a colheita, a pequena serelepe não titubeava! Corria, o mais rápido que podia, olhando para todos os lados, ângulos, tudo que os olhos pudessem captar. Os agricultores riam entre si, pensando:

- “Pobre menina, pensa que o vento pode pegar. Pobre garota ambiciosa, pensa que a vida pode enganar. A natureza é esperta demais para ela, jamais alguém conseguiria pegar o vento, ainda que em contento, jamais terás alento”. E se puseram a rir, porque a canção do vento (o que diria ela?) não sabia mentir.

Quando não menos esperta a menina surge, mãos fechadas em concha. Olhava para eles com olhos de fascínio, a roupa em pura fuligem, os pés ardendo de tanto correr. E os homens pensaram, “que ela carrega nas mãos”? Seria o vento? Seria possível? A criança fechou as palmas o mais que aguentou, respiração ofegante. Fez mistério, a testa já suando frio. Era chegado o momento.

E ela abriu as mãos, rápida e precisa. Dentre os pequenos dedos, liberta e feliz, saía uma borboleta colorida, as asas ainda desajeitadas. Voou rápido. E se foi. E os homens apenas refletiram, sozinhos em seus pensamentos, que aquela criança era desorientada, prendendo borboletas para depois soltar. Sem admitir, é claro, que por um momento acreditaram que ela havia mesmo aprisionado o vento.

E a menina olhava fascinada, ainda, olhos marejados. Sabia que os eles não compreenderiam. A borboleta colorida era o vento colado às asas, que livre voava, dando cor ao céu. A mais temida e destemida borboleta.

Quem sabe um dia, acreditariam. Já que a vida era nova, a cada momento.